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Notícias

8 de Março de 2018

Documento do mês de março de 2018

A greve dos serviços Telégrafos-Postais de março de 1920

“Laura da Assunção Afonso Varela, uma mulher indomável”

Para assinalar o Dia Internacional da Mulher o Arquivo Distrital de Évora divulga um documento que faz parte do Fundo do Governo Civil de Évora. É o relatório enviado, a 10 de abril de 1920, pelo administrador do concelho de Mourão, Manuel Nobre de Gusmão, ao governador civil de Évora, Florival Sanches de Miranda, reportando os acontecimentos da greve ocorrida naquele concelho.

É uma peça sublime não apenas dos primórdios da ação do movimento sindical em Portugal mas, sobretudo, do papel que as mulheres desempenharam no mundo do trabalho. Havia mulheres que valiam mais do que mil homens e ninguém, nem mesmo o próprio Estado, as conseguia domar, como foi o caso da encarregada do Posto dos Correios de Mourão, Laura Varela. Como veremos, esta senhora, em linguagem popular, “fez gato-sapato” das autoridades, fechando o posto quando queria, desobedecendo às ordens do administrador do concelho e regressando ao trabalho mesmo contra a vontade daquele. É a história de uma grevista de uma vila do interior de Portugal que, sozinha, enfrentou sem medo o poder e venceu.

Após a 1ª Guerra Mundial o país atravessava uma grave crise económica, social e política. As greves sucederam-se por todo o país. Uma das greves com repercussões na estabilidade do país foi a greve dos funcionários dos serviços telégrafos-postais (telegrafistas, distribuidores postais e guarda-fios), que se iniciou a 3 de março de 1920, e, no caso do Distrito de Évora, durou até início de abril do mesmo ano.

A encarregada da estação Telégrafo-Postal de Mourão, Laura da Assunção Afonso Varela, aderiu à greve para lutar por melhores condições de vida e de trabalho. Dia após dia a grevista foi mostrando relutância em regressar ao seu posto de trabalho, deixando o administrador do concelho de Mourão numa posição bastante constrangedora, como se depreende do relatório que este enviou para o governador civil.

O administrador do concelho refere no relatório que a greve teve início em Mourão no dia 4 de março, e que tivera conhecimento do facto porque a encarregada do serviço, Laura Varela, colocara o seguinte aviso na porta da estação telégrafo-postal: “Tendo-se declarado a greve Telégrafo-Postal, o pessoal desta Estação resolveu ser solidário na causa comum. 4-3-920”.

O administrador do concelho tomou posse da estação e perguntou então à encarregada se realmente se encontrava de greve, tendo esta respondido afirmativamente. Depois de a encarregada lhe passar o respetivo recibo de entrega da estação, o administrador colocou aí um praça da Guarda Fiscal, que estava habilitado para exercer funções de serviço telegráfico, que se manteve ao serviço durante 3 dias. Depois colocou no cargo uma outra senhora da vila, que exerceu funções somente 4 dias porque, no entretanto, adoeceu.

No relatório diz que a grevista, D. Laura, dormia num compartimento da estação contínuo à sala onde estava o telégrafo e para que a senhora não “entendesse d’ouvido a correspondência transmitida” a intimara a sair do seu quarto, mas permitindo a utilização de outros compartimentos do edifício. Depois de uma acesa discussão, a encarregada saiu apenas quando ele se declarou “responsável pelos haveres” que ela deixara no edifício.

Ainda na presença da encarregada, no dia 6, para se proteger das responsabilidades, refere o administrador que procedeu “à aposição de selos nas portas dos compartimentos interiores que assim ficaram completamente isolados da estação”.

Nos dias que se seguiram, a diversos pretextos, nomeadamente, para “alimentar umas galinhas que ali possuía e lá se encontravam”, “que precisava entrar nos seus aposentos particulares, para se prover de víveres que lá se encontravam”, a encarregada foi ao edifício da estação, tentando forçar a entrada nos compartimentos selados, insultando os guardas e a senhora que se encontravam de serviço.

No dia 15 de março apresentou-se ao serviço o distribuidor postal, José Batista, que “por solidariedade também tinha abandonado o serviço”. E no dia 16 foi o administrador do concelho informado pelo cabo comandante da GNR que a encarregada “estava resolvida a retomar o serviço”. Na estação a encarregada pediu-lhe então para alugar o aparelho para trocar impressões com o colega de Reguengos. O cabo da GNR perguntou-lhe se, efetivamente, pretendia retomar ao seu local de trabalho, tendo a mesma respondido afirmativamente. O administrador diz que fez logo um comunicado ao governador civil a informar que a greve em Mourão tinha terminado mas a encarregada não o transmitiu como ele lhe pedira, alegando que se encontrava adoentada, que o enviaria no dia seguinte.

No dia 17 o administrador mandou o oficial de diligências da Administração do Concelho à estação saber se o comunicado já fora enviado. Foi informado que a D. Laura estava doente e que continuava de greve, recusando fazer as declarações da doença e de greve por escrito.

Dirigiu-se então o próprio administrador do concelho à estação e censurou a encarregada por “falta de correção e de lealdade no seu procedimento”. Voltou a requisitar um praça à GNR para ficar de guarda à estação para impedir que a funcionária utilizasse o aparelho telegráfico.

No dia 25 de março, em conformidade com as instruções do governador civil, mandou o oficial de diligências da Administração do Concelho intimar a encarregada a retomar ao serviço. Como no dia 26 a mesma não compareceu no local de trabalho, procedeu ao levantamento do competente auto de abandono do lugar que enviou ao governador civil.

Mas no dia 27 a D. Laura foi a Lisboa e, ao regressar, no dia 1 de abril, anunciou ao guarda que se encontrava na estação que, às 8 horas da manhã, tomaria conta da mesma, ameaçando o distribuidor postal que abandonara a greve “de que seria o primeiro a «guinar»”.

O administrador, surpreendido, ordenou à encarregada que iniciasse funções somente quando ele tivesse a confirmação oficial da finalização da greve e a autorização para lhe entregar a estação. A senhora Laura Varela, perante isso, ”com modos desabridos e gestos agressivos, queria forçosamente apoderar-se da estação, dizendo que não tinha que esperar a minha comparência, nem as minhas ordens, nem a minha autorização porque quem ali mandava era ela visto que a greve tinha acabado e ela retomava ao serviço”.

O administrador, Nobre de Gusmão, refere que a senhora lhe apresentou um papel datilografado e com um carimbo branco, que ele não reconheceu, razão pela qual não consentiu que se ela se aproximasse dos aparelhos e lhe ordenou que abandonasse a estação. A encarregada não obedeceu, ficando na entrada do edifício a trabalhar: “apossando de algum serviço postal (registos) e telegráficos que ia chegando, cobrando os portes”, informando as pessoas que o serviço não prosseguia porque o administrador se opunha. Mais uma vez, este ordenou que ela saísse do edifício e, como esta não acatara a sua ordem, mandou prendê-la.

Sabendo da situação, o Dr. Francisco Pereira Dias da Fonseca foi à Administração do Concelho e pediu licença ao administrador para levar a senhora a Reguengos porque ela tinha de lá estar nesse dia. O administrador aceitou e pediu que lhe trouxesse notícias oficiais sobre a greve. Ordenou ao oficial de diligências que ia acompanhar a reclusa, munido do competente ofício para o Juiz de Direito, que se em Reguengos soubessem oficialmente que a greve terminara, não a entregasse ao Juiz.

A encarregada da estação regressou a Mourão a 2 de abril, assim como as notícias oficiais sobre o fim da greve. No mesmo dia, depois de receber um telegrama do Diretor dos Correios de Évora, o administrador informou a senhora encarregada que podia retomar as suas funções. No dia 3 recebeu o telegrama oficial do governador civil confirmando o fim da greve e pedindo-lhe o relatório da situação.

Cota: Governo Civil de Évora, Pt. 204

 

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